Um Manual para a 
Vida Cristã
 5

Uma coisa pedimos ao Senhor, e uma coisa Ele pede de nós

Mateus 5.8-9

 

No artigo anterior (Ajuda Barnabas, Janeiro-Fevereiro 2024, p.i-iv) examinamos a quarta e a quinta bem-aventuranças e nosso desejo de ser como Jesus. No artigo abaixo, vemos como isso é enfocado com mais precisão na sexta e sétima bem-aventuranças e nas gloriosas honras que nos são prometidas de ver Deus e sermos chamados de Seus filhos e filhas.

 

B em-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus. (Mateus 5.8) Quando Jesus disse essas palavras aos Seus discípulos mais próximos, sentados juntos na encosta de uma montanha, sem dúvida eles estavam olhando atentamente para Ele enquanto ouviam. Eles não perceberam, mas estavam vendo Deus. 

Foi uma promessa impressionante para aqueles que haviam crescido em uma fé que, talvez de forma única no Oriente Médio naquela época, não tinha imagens de seu Deus. Elas eram estritamente proibidas pelo segundo dos Dez Mandamentos (Êxodo 20.4).  

No entanto, alguns crentes ansiavam muito por ver Deus. Davi orou para que pudesse “contemplar a beleza do Senhor” (Salmo 27.4 ARA).  Esse era o desejo de seu coração. “Uma coisa peço ao Senhor”, disse ele, “e a buscarei”. No entanto, ele não imaginava mais do que passar um tempo no Tabernáculo, onde o Senhor estava especialmente presente, mas ainda não podia ser visto com os olhos físicos. 

A proximidade do relacionamento de Moisés com o Senhor foi comparada a Deus falando com Moisés “face a face, como quem fala com seu amigo” (Êxodo 33.11). No entanto, parece que Moisés nunca viu realmente o rosto de Deus. Certa vez, Moisés disse: “Peço-te que me mostres a tua glória”. O Senhor passou por ele, mas permitiu que Moisés visse apenas Suas costas em retirada, não Seu rosto 
(Êxodo 33.17-23).

Assim como muitas das outras promessas das bem-aventuranças, o cumprimento completo desta acontecerá somente no céu. Lá, de fato, veremos Deus, com os olhos de nossos corpos ressuscitados. “Eles verão a sua face” (Apocalipse 22.4). 

Mas a promessa de ver a Deus começa a se cumprir também nesta vida, devido às suas muitas camadas de significado. A palavra Aramaica que Jesus provavelmente usou para “ver” foi chaza, que não se refere à visão física. Pelo contrário, trata-se de uma consciência profunda. Aqueles que veem Deus nesta vida O reconhecem no que está acontecendo com eles e ao seu redor. Por meio de uma percepção espiritual interna, eles O veem atuando nas circunstâncias, na natureza, nos milagres, no sofrimento, na vida cotidiana, nas outras pessoas e em si mesmos. Eles conseguem distinguir Sua providência e Sua graça no tumulto de nosso mundo. 

Com essa consciência, também discernimos a presença de Emanuel (Deus conosco, Mateus 1.23) em nossa própria vida. Sentimos, pessoalmente, a realidade de promessas como “E eu estarei sempre com vocês” (Mateus 28.20). Para aquele que vê a Deus, o conhecimento intelectual de tais Escrituras é transformado em um conhecimento do coração por meio de experiências vividas. Desse conhecimento do coração flui a abundância de conforto, paz e alegria que a presença de Jesus traria se Ele estivesse visivelmente diante de nós. Com essa consciência, podemos afirmar que em Jesus “vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17.28). 

Outra camada de significado vem com o texto Grego de Mateus 5.8. Dentre as muitas palavras possíveis para “ver”, a que é usada aqui significa contemplar. Não é uma olhada de relance. Nem é uma observação simples e passiva. Significa olhar longa e intensamente, deleitando nossos olhos bem abertos em algo maravilhoso. João usou a mesma palavra em Apocalipse 22.4. 

Assim será quando virmos Deus no céu na plenitude de Sua glória. Seremos absorvidos e sustentados ao olharmos e contemplarmos  a Ele. O mesmo pode acontecer aqui na Terra, quando O virmos com os olhos da fé.  

No primeiro século, os espelhos eram feitos de bronze, estanho ou prata, extremamente polidos, mas com um reflexo embaçado e um pouco escuro. No final de 1 Coríntios 13, onde Paulo compara a terra e o céu, ele nos diz que “agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como um espelho; mas, então, veremos face a face” (1 Coríntios 13.12). Quando tivermos dificuldade para ver Deus em nossa vida diária, vamos nos encorajar com o conhecimento de que um dia poderemos jogar fora o espelho, erguer os olhos e contemplar diretamente Sua beleza deslumbrante. 

Esta promessa é para aqueles que são puros de coração, ou seja, aqueles cujos corações foram purificados, como se todas as toxinas tivessem sido eliminadas e todas as manchas removidas. A frase teria trazido à mente dos ouvintes de Jesus a imagem de podar os galhos inúteis de uma videira para torná-la frutífera ou preparar um campo para ser plantado removendo as pedras e arando-o.

É o sangue de Jesus que nos purifica de todo pecado (1 João 1.7), mas temos um papel a desempenhar no desenvolvimento de um coração puro. Devemos confessar nossos pecados (1 João 1.9). Devemos nos esforçar para evitar desejos errados, atitudes erradas e motivos ou intenções errados. Devemos tentar manter afastados o egoísmo, o orgulho e a ambição. Devemos ser sinceros e nos concentrar simplesmente em servir a Deus. O anseio por essa pureza de coração faz parte do anseio por justiça da quarta bem-aventurança.

Paulo dá alguns conselhos práticos: “Encham a mente de vocês com tudo aquilo que é bom e merece elogios, isto é, tudo o que é verdadeiro, digno, nobre, correto, puro, agradável e decente” (Filipenses 4.8 NTLH). Mas, pela graça de Deus, à medida que crescemos em pureza de coração, nos tornaremos aqueles para quem todas as coisas são puras (Tito 1.15). Então, estaremos aptos a ver Deus face a face, a estar em Sua presença (Salmo 24.3-4). 

Ser autorizado a entrar na presença dos reis era tradicionalmente considerado uma grande honra. Na cultura dos tempos Bíblicos, ver o rosto do rei era um favor especial, concedido a seus amigos. A Rainha de Sabá exclamou a Salomão: “Como devem ser felizes os homens da tua corte, que continuamente estão diante de ti e ouvem a tua sabedoria!” (1 Reis 10.8). Se havia tanta alegria em estar continuamente na presença de um rei humano, então estar continuamente na presença de nosso Rei celestial deve se enquadrar na categoria de bem-aventurança inimaginável que Paulo se esforçou para expressar (1 Coríntios 2.9). 

Esta bem-aventurança nos promete a honra de ver a face do Rei dos reis e a alegria de ver a face de nosso Amado Amigo. Esta é a bem-aventurança dos puros de coração. 

Tal pureza talvez pareça estar além de nosso alcance. Não nos desesperemos. Quanto mais claramente vemos Deus em  Sua pureza, mais nos conscientizamos do orgulho e do engano em nosso coração e da necessidade de nos arrependermos. Assim, sentimos cada vez mais nossa indignidade, mesmo quando crescemos em semelhança a Cristo. Paulo chamou a si mesmo de o pior dos pecadores (1 Timóteo 1.16). O piedoso Jó se arrependeu no pó e na cinza (Jó 42.5-6).

No final, porém, “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é” (1 João 3.2). Alfred Plummer descreve um processo gradual, iniciado na terra e concluído no céu, à medida que crescemos em pureza e, simultaneamente, em nossa capacidade de ver Deus:

Aqueles que forem admitidos na Presença verão a Ele, porque são como Ele, e se tornarão mais semelhantes a Ele porque O veem. A assimilação é o resultado natural da intimidade, e a intimidade deve ser iniciada neste mundo, se quiser dar frutos no próximo. 1

Em certo sentido, todos verão Deus, pois todos comparecerão perante o tribunal de Cristo (2 Coríntios 5.10). Meu irmão, que estava com uma doença terminal, um marxista e ateu militante durante toda a sua vida adulta, disse à minha mãe que havia morrido e se encontrado diante de Deus, que lhe disse que ele ainda não estava pronto, por causa de sua pecaminosidade, e o mandou de volta à terra. Meu irmão se viu vivo e de volta em sua cama de hospital. Ele pediu uma cruz e acredito que em seus últimos dias ele se voltou para Cristo.    

Também nos é dito que todo olho verá Jesus quando Ele voltar e que “todos os povos da terra se lamentarão por causa dele” (Apocalipse 1.7). Mas a sexta bem-aventurança não se refere à terrível experiência de ver Deus em Seu papel de Juiz e à terrível dor de tê-Lo desprezado e rejeitado. Pelo contrário, é uma promessa preciosa para aqueles que anseiam pelo Seu aparecimento (2 Timóteo 4.8) em que no céu finalmente veremos nosso querido Senhor. 

Ó a alegria e a honra de sentir a presença de nosso Amado, o Rei dos reis, a quem um dia veremos face a face, à medida que nossos corações forem purificados por nossa crescente experiência com Ele e Sua santidade.

B em-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus. (Mateus 5.9)
Depois de seis bem-aventuranças sobre os pensamentos e a vida interior de um Cristão semelhante a Cristo, passamos agora a uma - a única em toda a lista - que envolve uma ação externa específica. Sabemos que ser misericordioso (a quinta bem-aventurança) envolve ações, mas é somente aqui, na sétima bem-aventurança, que nos é dada uma ação específica a ser realizada: devemos promover a paz

“Paz” no Novo Testamento é a palavra Grega eirene. Seus significados cotidianos incluem relacionamentos harmoniosos entre as pessoas e entre as nações, segurança, ausência de conflito e ordem. Seu significado Cristão se concentra em um relacionamento harmonioso entre Deus e os seres humanos. O conceito Bíblico de paz também é fortemente influenciado pela palavra shalom, do Antigo Testamento, que significa plenitude. Shalom indica um bem-estar completo do corpo, da mente e do espírito e em nossos relacionamentos uns com os outros. 

Como “paz” tem muitos significados, “promover a paz” também tem muitos significados. Um deles, correspondente ao significado cotidiano de eirene, significa esforços práticos para levar a paz entre pessoas que brigaram. Em nosso mundo pecaminoso, os pacificadores nem sempre são bem-vindos. Seus esforços podem ser rejeitados como interferência. A pacificação é uma tarefa que exige coragem, paciência, sabedoria, discernimento e tato. Pode ser custoso e sacrificial.

Esse tipo de pacificação poderia ser chamado de propagação da paz no mundo. Mas os Cristãos também devem ser propagadores da paz de Deus. Isso significa que devemos ajudar outras pessoas a se reconciliarem com Deus. Devemos ajudá-los a encontrar paz com Ele, arrependendo-se e confiando em Jesus, que nos salva por meio de Sua morte expiatória, assim como nós mesmos fizemos. Pois somos Seus embaixadores, falando as palavras que Ele falaria, implorando às pessoas que se reconciliem com Deus (2 Coríntios 5.19-20). Nossa mensagem é o “evangelho da paz” (Efésios 6.15). Os Cristãos não devem apenas “curar as feridas externas do mundo”, mas também “estancar as profundas feridas internas da alma dos homens”. 2

O pacificador que está levando uma mensagem espiritual desafiadora pode ser visto como um perturbador como Elias (1 Reis 18.17) ou criticado por criar divisão em vez de unidade (Mateus 10.34-37). A pacificação pode resultar em hostilidade contra o pacificador, mas isso faz parte da cruz que tomamos quando seguimos Cristo (Mateus 10.38). 

Poderíamos dizer que o mesmo ocorre em nossas próprias almas. Fizemos as pazes com Deus nos entregando alegre e confiantemente a Ele. Mas no momento em que fazemos as pazes com Deus, Satanás declara guerra contra nós. Pelo resto de nossa vida terrena, temos de lutar contra seus esforços para nos arrastar do Reino do Filho de volta ao domínio das trevas (Colossenses 1.13). Richard Chenevix Trench, resumindo o ensinamento de Agostinho (354-430), escreve sobre essa guerra inevitável no coração do crente entre a carne e o espírito:

… em certo sentido, no homem redimido não há paz, mas guerra - uma guerra que essa mesma redenção trouxe (...) no entanto, esse é o caminho para a paz, a única que merece esse nome. 3

As bem-aventuranças são para os seguidores de Jesus Cristo, o Príncipe da Paz, cujo reinado é caracterizado pela paz sem fim e pela justiça eterna (Isaías 9.6-7). Como pacificadores, estamos ajudando a estender Seu governo soberano. A própria obra pacificadora de Jesus foi mais custosa e sacrificial do que a nossa jamais poderá ser, pois Ele fez as pazes conosco ao derramar Seu sangue na cruz (Colossenses 1.20).

Ele é o Filho do Deus da paz (Romanos 15.33; 16.20; 1 Coríntios 14.33; Filipenses 4.9; 1 Tessalonicenses 5.23; Hebreus 13.20). Ele é o Filho do Deus que faz cessar as guerras (Salmo 46.9), o Deus que odeia aqueles que amam a violência (Salmo 11.5), o Deus que enviou um grande dilúvio para destruir a Terra porque ela estava cheia de violência (Gênesis 6.13).

A palavra Grega bastante rara usada em Mateus 5.9 para “pacificadores” era geralmente aplicada a imperadores. Mas, muito melhor do que ser um imperador terreno, somos colaboradores de Deus quando nos empenhamos em promover a paz.

O título de “filhos de Deus” nos é concedido pelo próprio Deus. Na maravilhosa afirmação de 1 João 3.1, somos chamados de “filhos de Deus”, usando a palavra Grega tekna, que significa descendência ou filhos. Mas na sétima bem-aventurança, a palavra é huioi, que significa filhos (o que podemos entender como incluindo também as filhas). Tekna carrega a nuance de afeto terno, mas huioi indica dignidade e posição elevada. 4 Quando Deus nos chama de Seus filhos e filhas, Ele está nos honrando por participarmos de Sua obra de pacificação. Ele está apreciando nossos esforços. Ele está reconhecendo que, em nosso compromisso com a paz, estamos refletindo Seu Filho Jesus. Essa honra inacreditável nos enche de alegria. 

A bênção dessa bem-aventurança é para os pacificadores, não necessariamente para os amantes passivos da paz. Os amantes passivos da paz podem ignorar os problemas e evitar assuntos, talvez para perpetuar uma paz superficial. Mas não deve haver coexistência pacífica com o mal. 

A felicidade prometida pelas honras de Deus é para aqueles que tentam ativamente promover a paz onde há hostilidade, desconfiança, opressão, violência ou outro conflito. É para aqueles que estão dispostos, se necessário, a abrir mão de sua própria paz para levar paz aos outros.

Ser um pacificador é um chamado elevado e nobre, um privilégio concedido por Deus aos Seus ungidos, e “filhos de Deus” é um título elevado e nobre. No entanto, é algo para o qual todo Cristão é chamado, e um título do qual todo Cristão deve ser digno. 

Se não formos pacificadores, não estaremos refletindo o caráter de nosso Senhor Jesus Cristo. Então, somos de fato Seus discípulos? Somos definidos pelo que fazemos. Jesus advertiu que os falsos profetas serão conhecidos por seus frutos, continuando:

Nem todo aquele que me diz: “Senhor, Senhor”, entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.  Muitos me dirão naquele dia: “Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?”  Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!” (Mateus 7.21-23)

COs Cristãos devem se destacar como diferentes dos não Cristãos. Estamos no mundo, mas não somos dele. Não podemos conviver confortavelmente com a discórdia, o ódio, a raiva ou a amargura, que são todos frutos do pecado no coração dos seres humanos. Satanás é o destruidor (Apocalipse 9.11), mas nosso Deus é o Criador. Ele é o autor da paz (1 Coríntios 14.33 NKJV em Inglês). Ele se humilhou e veio ao mundo para estabelecer a paz ao morrer em uma cruz (Filipenses 2.6-8): paz entre cada um de nós e Deus (2 Coríntios 5.19) e paz entre Seus seguidores (Efésios 2.13-16). 

Não precisamos e não devemos nos encaixar nos moldes do mundo ou pensar da maneira do mundo. Como Cristãos, não somos chamados para julgar, pois o julgamento está na próxima vida e nas mãos de Deus, o único que conhece o coração. Não devemos ser agentes de divisão, fomentadores de conflitos ou incentivadores do ódio. Essas são ações de perturbadores da paz e são facilmente realizadas, até mesmo por algo aparentemente trivial como uma pequena fofoca (Provérbios 16.28; 26.20). 

Vimos que a violência humana era o pecado mais abominado por Deus na época de Noé.  Vimos que promover a paz é a única ação mencionada nas bem-aventuranças, portanto, podemos considerá-la a “boa ação” que Ele mais deseja que realizemos. A partir disso, sabemos que somos chamados a levar a todas as situações Jesus, o Príncipe da Paz, e Seu amor reconciliador, Seu perdão e Sua graça. 

Os discípulos do Príncipe da Paz devem ser pacificadores ativos, custe o que custar. Deus os honrará chamando-os de Seus filhos e filhas, e eles sentirão uma alegria extraordinária em seus corações.


DR PATRICK SOOKHDEO
Diretor Internacional, Ajuda Barnabas

1 Alfred Plummer, An Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Matthew (Comentário Exegético sobre o Evangelho Segundo São Mateus), 3ª ed. (London: Robert Scott, 1911), p.67.
2 Richard Chenevix Trench, Exposition of the Sermon on the Mount, drawn from the Writings of St. Augustine with Observations (Exposição do Sermão do Monte, extraída dos Escritos de Santo Agostinho com Observações), (London: John W. Parker, 1844), p.16.
3 Trench, Exposition of the Sermon on the Mount (Exposição do Sermão do Monte), p.16.
4 R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Matthew’s Gospel (Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1943) pp.193-4.
 
 

More stories