Um Manual para a
Vida Cristã

Parte 2
Cristo: Nosso Modelo e Padrão

Dr. Martyn Lloyd-Jones conta a história do Dr. B.R. Ambedkar (1891-1956), um eminente advogado, economista, reformador social e político indiano.1 O Dr. Ambedkar era um Dalit, um grupo abaixo da casta mais baixa do sistema de castas Hindu, anteriormente chamado de “intocáveis”. No final da vida, ele se converteu do Hinduísmo ao Budismo. Enquanto era estudante, ele morou nos EUA e no Reino Unido, mas descobriu que não havia vida no Cristianismo que ele via lá. Ele acreditava que o poder transformador que estava buscando poderia ser encontrado no Budismo. 

Mahatma Gandhi (1869-1948) foi atraído por Cristo, mas repelido por Seus seguidores. Ele fez um comentário famoso: “Eu seria um Cristão se não fosse pelos Cristãos”. No entanto, em sua autobiografia, ele registrou que o Sermão do Monte “foi direto ao meu coração” e “me encantou além da medida.”2 

Como a verdadeira fé pode ter se degenerado tanto? É claro que o fracasso está conosco desde o início da Igreja. Os Cristãos de Éfeso perderam seu primeiro amor (Apocalipse 2.4-5). Contudo, a história sugere que a fé Cristã, fundada na simplicidade de Jesus, muitas vezes se transforma em uma mera religião quando se torna um sistema respeitável, baseado principalmente em uma liturgia aprovada ou em uma doutrina sólida. 

Em 312, apenas sete anos após a “Grande Perseguição”, o Imperador Romano Constantino abraçou o Cristianismo. No ano seguinte, ele e o Imperador Licínio estabeleceram a liberdade religiosa em todo o Império Romano. Sem mais perseguições, a Igreja cresceu rapidamente. Os líderes da Igreja começaram a expressar preocupação com o fato de que alguns dos novos Cristãos haviam se “convertido” à religião do imperador apenas na esperança de ganhar seu favor. À medida que o Cristianismo se tornou gradualmente a religião dominante do Império, ele absorveu a cultura romana até que o estilo de vida dos Cristãos da elite urbana fosse pouco diferente daqueles ao seu redor.3 

O Cristianismo deixou de ser uma fé simples centrada em Jesus, com as Bem-aventuranças e o Sermão do Monte moldando a vida dos Cristãos. Ele se tornou uma religião cívica baseada no poder e (que Deus nos perdoe), por muitos e longos séculos, um opressor dos outros.

Não mais olhando para o exemplo de Jesus, os Cristãos copiaram os modelos contemporâneos de liderança, com os bispos do século V se inspirando nos cônsules Romanos e os pastores do século XXI se inspirando em homens de negócios ou personalidades da TV. 

Os teólogos norte-americanos Stanley Hauerwas e William Willimon falaram de “Constantinianismo”, o que significa que “com um evangelho adaptado e domesticado, poderíamos encaixar os valores norte-americanos em uma estrutura vagamente Cristã”.⁴ Eles viram essa “domesticação” do Evangelho e da ética Cristã como típica da Igreja Ocidental após 313, quando o Cristianismo era dominante na sociedade.

Infelizmente, a Igreja ocidental perdeu a simplicidade de Jesus e foi marcada pela superficialidade e pela ignorância.

Aigreja nunca pretendeu ser poderosa e dominante. Ela foi concebida para ser uma comunidade de peregrinos. As pessoas de fé são “estrangeiros e peregrinos” na Terra (Hebreus 11.13, BKJ; 1 Pedro 1.1; 2.11). Outras traduções dizem forasteiros, andarilhos, exilados ou estranhos (o texto original foi escrito na língua Inglesa). A Terra não é nosso lar. Não pertencemos a este lugar porque somos cidadãos do céu (Filipenses 3.20). 

É interessante notar que as bem-aventuranças começam e terminam com a recompensa prometida do Reino dos céus (Mateus 5.3,10), como se Jesus estivesse enfatizando aos Seus discípulos que eles pertenciam a um reino diferente. 

Hauerwas e Willimon descreveram a Igreja como uma colônia, uma cabeça de praia ou um posto avançado, que é “uma ilha de uma cultura no meio de outra, um lugar onde os valores do lar [céu] são reiterados e transmitidos aos jovens, um lugar onde a linguagem e o estilo de vida característicos dos estrangeiros residentes são amorosamente nutridos e reforçados”. São as exigências do Sermão do Monte, explicam eles, que tornam necessária a formação de uma colônia, porque essas exigências, se acreditadas e vividas, são o que nos torna diferentes do mundo.5 

Estamos viajando para o nosso Lar celestial e deveríamos viajar com pouca bagagem, não sobrecarregados com bens materiais. Como estrangeiros apátridas neste mundo, não temos poderes terrenos ou terras físicas. Nunca tivemos a intenção de construir grandes edifícios e santuários que demonstrassem status e privilégio. 

Quando Jesus disse que devemos nos tornar como crianças para entrar no Reino de Deus, Ele estava se referindo à falta de poder das crianças na sociedade de Sua época. Podemos ver isso em Seu incentivo a nos “humilharmos”, ou seja, a assumirmos uma posição humilde (Mateus 18.3-4). 

A comunidade Cristã primitiva era uma Igreja peregrina sem poder terreno.

As Bem-Aventuranças e o Sermão do Monte nos levam de volta ao início, a partir do qual nos oferecem um caminho a seguir, sendo esse caminho o caminho de Deus, o caminho para a glória.

“A renovação da igreja se dará por meio de (...) uma fidelidade intransigente ao Sermão do Monte”, disse o teólogo Alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), que viveu em um país e em uma época em que grande parte da igreja apoiava Adolf Hitler e a ideologia nazista.6

Quando o domínio de longa data da Igreja nos EUA estava começando a desaparecer, Hauerwas e Willimon escreveram em 1989 sobre a bênção que era viver em uma época em que a Igreja estava se tornando marginalizada. 

…no crepúsculo deste mundo [dominado pelos Cristãos], temos a oportunidade de descobrir o que tem sido e sempre foi o caso - que a igreja, como aqueles chamados por Deus, incorpora uma alternativa social que o mundo não pode conhecer em seus próprios termos. 

O fim da visão de mundo Constantiniana, o declínio gradual da noção de que a igreja precisa de algum tipo de “cultura Cristã” circundante para sustentá-la e moldar seus jovens, não é uma morte a ser lamentada. É uma oportunidade para celebrar. O declínio da antiga síntese Constantiniana entre a igreja e o mundo significa que nós, Cristãos Americanos, estamos finalmente livres para sermos fiéis de uma forma que faz com que ser Cristão hoje seja uma aventura emocionante.7

O papel dos Cristãos é viver vidas que sejam um modelo de Cristo. Em vez de tentar mudar a cultura da sociedade em geral, os Cristãos devem simplesmente viver a ética distintamente Cristã do Sermão do Monte.

Todo Cristão deve, portanto, encarnar a vida de Jesus. Cada Bem-Aventurança mostra um aspecto do caráter de Cristo e deve ser um aspecto do caráter de um Cristão também, formado em nós pelo Espírito de Cristo que habita em nós (Romanos 8.9). As Bem-Aventuranças não são uma miscelânea de virtudes, das quais se pode escolher uma ou duas. Pelo contrário, todo discípulo deve mostrar todas essas características. O mesmo se aplica ao restante do Sermão. Todo o ensinamento é para todos os discípulos de Jesus. 

O Sermão do Monte nos dá um retrato do próprio Pregador.8 E devemos ser como Ele. 

Alguns dizem que, como Cristãos, estamos sob a graça, e não sob a lei, e, portanto, não precisamos de regras de nenhum tipo. Mas isso é um erro. O Jesus ressuscitado ordenou aos Onze que “façam discípulos de todas as nações (...) ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei” (Mateus 28.19-20). Ele queria discípulos que modelassem suas vidas de acordo com as dEle, discípulos que não fizessem pouco caso de Seus mandamentos, mas que procurassem obedecer a eles.

O motivo da encarnação foi para que “as justas exigências da lei fossem plenamente satisfeitas em nós” (Romanos 8.3-4). Nas palavras de J. Oswald Sanders, “o propósito principal da graça é nos capacitar a cumprir a exigência da santa lei de Deus”, e a Igreja precisa desesperadamente do ensino ético do Sermão do Monte.9 

Não permitamos que ninguém, seja liberal ou evangélico em seus pontos de vista teológicos, e por mais sincero que seja em suas convicções pessoais, nos prive do desafio, da busca e da inspiração desse sermão incomparável.10

Alguns dizem que o Sermão do Monte foi pregado para outra época, não para o mundo moderno. Há quem diga que não se pode esperar que imitemos uma Pessoa que viveu na Terra há 2.000 anos, enquanto abrimos caminho no pântano de nosso contexto humanista secular e pluralista. Alguns dizem que é uma ilusão achar que Jesus poderia se encarnar na vida de Seus seguidores no século XXI. Alguns dizem que o Sermão é para toda a humanidade, não apenas para os discípulos de Cristo. Alguns dizem que o Sermão é para uma elite Cristã, não para os Cristãos comuns. Alguns dizem que ele é para o “remanescente” em uma futura “era do Reino”. Alguns dizem que os valores do Sermão são inatingíveis e que, portanto, não vale a pena nem tentar. 

Como Sanders ressalta, cada princípio do Sermão é reiterado de uma forma ou de outra nas epístolas do Novo Testamento.11 O apóstolo Paulo se esforçou constantemente para se tornar mais parecido com seu Mestre. Podemos ter certeza de que o Sermão do Monte, descrito a ele pelos Onze que se sentaram aos pés do Senhor e o ouviram em primeira mão, deve ter sido extremamente importante para ele. Deveria ser extremamente importante para todos os discípulos de Cristo, nos mostrando como Ele quer que vivamos, que é como Ele mesmo viveu. 

É por meio da vivência do Sermão do Monte que podemos dar bons frutos em nossa vida, os figos e as uvas que Jesus descreve (Mateus 7.15-20). A menos que nos apeguemos a Jesus e a Seus ensinamentos, nossa vida dará frutos amargos ou meramente a penugem de cardo.

O Sermão do Monte deve ser abraçado e vivido, pois nada mais é do que a vida de Jesus que está sendo abraçada e o caráter de Jesus que está sendo formado em cada um de nós à medida que o vivemos.

Jesus não é apenas nosso Salvador, Aquele que morreu na cruz para tirar nossos pecados, Aquele que nos dá nova vida por meio de Sua ressurreição, Aquele que nos dá um futuro e a esperança segura do céu. Ele também é nosso Senhor, nosso Mestre, nosso Rei. Ele é a vida que vivemos. Ele é o ar que respiramos. Nele vivemos, nos movemos e existimos (Atos 17.28). Nossa vida é inseparável Dele.

A questão não é apenas o que Jesus significava para nós quando cremos pela primeira vez, mas também o que Ele significa para nós agora, hoje, neste minuto. Nosso relacionamento contínuo com Ele é a essência da fé.

Paulo viu a importância de Jesus não apenas em termos de salvação, mas também como a fonte principal e a essência de seu próprio ser. Paulo estava “fixado” em Cristo. “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”, escreveu ele (Gálatas 2.20) e “para mim o viver é Cristo” (Filipenses 1.21). Foi a graça de Cristo que o carregou em momentos de dor e angústia (2 Coríntios 12.9). Paulo, por sua vez, carregava em seu próprio corpo “as marcas de Jesus” (Gálatas 6.17).

Em Filipenses 3.4-11, depois de descrever as coisas que sua comunidade considerava mais valiosas, ele rejeitou todas elas como esterco (v.8). O que Paulo valorizava agora, diz ele, era o “conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor”. Mais tarde, ele explica melhor:

Quero conhecer a Cristo, ao poder da sua ressurreição e à participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte, para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos. 
(Filipenses 3.10-11)

Ele via isso como um processo que dura a vida toda.

Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus. (Filipenses 3.12)

Paulo teve uma das conversões mais dramáticas que se possa imaginar (Atos 9). Ele sabia muito bem que é pela graça de Deus e por meio da morte expiatória de Cristo que somos salvos, não por guardar a lei de Deus (Gálatas 2.21). No entanto, foi seu relacionamento contínuo com Jesus que foi o foco de Paulo à medida que avançava na vida Cristã. Ele queria conhecer “Cristo Jesus, meu Senhor” (Filipenses 3.8), bem como “Cristo Jesus, nosso Salvador” (Tito 1.4). 

É claro que decidir colocar nossa confiança em Jesus é a coisa mais importante que já fizemos. No entanto, é muito triste quando Cristãos individualmente ou congregações inteiras param por aí. Ouvi falar de uma igreja perto de onde moro, em Wiltshire, no Reino Unido, que disse ao pastor para desistir de seus sermões sobre como viver a vida Cristã e apenas pregar uma mensagem do Evangelho para eles toda semana. Embora o evangelismo seja essencial, ele não deve ser separado de ensinar os crentes a viverem vidas piedosas e justas, refletindo a beleza de seu abençoado Senhor e, assim, tornando-se uma testemunha para os incrédulos. 

Nunca devemos parar de agradecer ao Senhor por ter morrido para tirar nossos pecados e de louvar Sua gloriosa ressurreição. No entanto, se nos concentrarmos apenas nisso, certamente estaremos perdendo Seu plano para nossa vida. 

Jesus falou sobre entrar por uma porta estreita e depois seguir por um caminho difícil (Mateus 7.13-14). Depois de decidirmos passar pela porta, devemos continuar pelo caminho, por mais difícil que seja. O discipulado é um processo contínuo no qual precisamos tomar inúmeras decisões todos os dias. 

Fizemos a escolha certa quando passamos pela porta estreita, mas precisamos continuar fazendo as escolhas certas se quisermos permanecer na difícil estrada que leva da porta estreita para a vida. O autor norte-americano John Steinbeck (1902-1968) escreveu:

Temos apenas uma história. Todos os romances, todas as poesias, são construídos sobre a interminável disputa entre o bem e o mal em nós mesmos.12

Jesus é nosso Senhor e nossa vida, além de nosso Salvador. Até chegarmos ao céu, enfrentamos conflitos internos todos os dias ao decidirmos se devemos agir de maneira semelhante à de Cristo ou de maneira diferente.

Devemos ser transformados por nosso relacionamento diário com Cristo (Romanos 12.2) - ou seja, “segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior” (2 Coríntios 3.18). 

Podemos ter uma boa ideia de como Paulo teria reagido à igreja de Wiltshire que mencionei a partir de suas palavras severas para a igreja de Corinto, que não havia sido muito transformada e ainda eram “crinças em Cristo”, ainda não prontos para o alimento sólido
(1 Coríntios 3.1-3). 

Uma parte fundamental dessa transformação é a renovação de nossa mente, para que amemos o que o Senhor ama e não o que o mundo ama. 

Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (Romanos 12.2)

Muitos hinos e canções Cristãos abordam esse tema, por exemplo: 

Que a mente de Cristo, meu Salvador,
Viva em mim dia a dia, 
Com Seu amor e poder controlando
Tudo o que faço e digo.13 

Como o Dr. Martyn Lloyd-Jones salienta:

O Cristão e o não Cristão são absolutamente diferentes naquilo que admiram. O Cristão admira o homem que é ‘pobre de espírito’... O mundo acredita na autoconfiança, na autoexpressão e no domínio da vida…

Então, obviamente, eles devem ser diferentes naquilo que buscam. “Bem-aventurados os que têm fome e sede”. Em busca de quê? Riqueza, dinheiro, status, posição, publicidade? Nada disso. ‘Justiça.’...14

No próximo artigo, começaremos a examinar as Bem-Aventuranças e veremos como elas podem nos transformar.

DR PATRICK SOOKHDEO 
Diretor Internacional, Ajuda Barnabas

1 Martyn Lloyd-Jones, Studies in the Sermon on the Mount  (Estudos no Sermão do Monte, publicado no Brasil pela Editora Fiel), Vol.1. (London: Inter-Varsity Fellowship, 1959) p.19. 2 M.K. Gandhi, An Autobiography or The Story of My Experiments with Truth (Autobiografia: Minha vida e minhas experiências com a verdade, publicado no Brasil pela Editora Palas Athena), (Ahmedabad: Navjivan Publishing House, 1940), p.49. 3 O cristianismo não se tornou a religião oficial do Império Romano até 27 de fevereiro de 380, quando o imperador Teodósio I emitiu o chamado Édito de Tessalônica. 4 Stanley Hauerwas and William H. Willimon, Resident Aliens: Life in the Christian colony (Estrangeiros residentes: a vida na colônia Cristã ) (Nashville: Abingdon Press, 1989), p.17. 5 Hauerwas and Willimon, Resident Aliens (Estrangeiros residentes), pp.12,74. 6 Dietrich Bonhoeffer in a 1935 letter to his brother cited in G. B. Kelly and F. B. Nelson (eds), A Testament to Freedom: The Essential Writings of Dietrich Bonhoeffer (Um Testamento para a Liberdade: Os Escritos Essenciais de Dietrich Bonhoeffer), (New York: HarperOne, 1990), p.320. 7 Hauerwas and Willimon, Resident Aliens (Estrangeiros residentes), pp.17-18. 8 J. Oswald Sanders, The World’s Greatest Sermon (O maior sermão do mundo) (London: Marshall, Morgan and Scott, 1972), p.7. 9 Sanders, The World’s Greatest Sermon (O maior sermão do mundo), p.16. 10 Sanders, The World’s Greatest Sermon (O maior sermão do mundo), p.16. 11 Sanders, The World’s Greatest Sermon (O maior sermão do mundo), p.14. 12 John Steinbeck, East of Eden (Leste do Éden) (New York: Viking Press, 1952), p.415. 13 Kate B. Wilkinson (1925) 14 Lloyd-Jones, Studies in the Sermon on the Mount (Estudos no Sermão do Monte, publicado no Brasil pela Editora Fiel), Vol.1. pp.37-38.

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